Meus Primeiros Passinhos

O pó que flutuava pelo quarto naquela manhã de feriado rodopiava do topo do guarda-roupas ao chão, fazendo partículas de sujeira brilharem ao encontro das frestas de sol da janela. A música nos fones de Rita estava suficiente alta para que ela não ouvisse nem a própria voz esganiçando “Papa Don’t Preach” da Madonna. Desprovida de grandes pernas, subia numa escada de três degraus e espanava o interior do guarda-roupas. Descia, empurrava a escada para o lado e repetia o movimento.

Enquanto fazia a faxina, Rita separava as roupas velhas e tudo que poderia ser passado adiante. De cima das gavetas, próximo à caixa de jóias, puxou mantos, fronhas, um apanhado de meias e luvas velhas e até mesmo um vestido perdido, que não lhe servia mais. Junto ao que havia separado, jogou sobre a cama uma pilha de álbuns de fotografias da família. Parou momentaneamente o serviço, colocou o espanador no chão e desamontoou os álbuns. Rita tirou os fones e murmurou: “meus primeiros passinhos”.

– Augusto! – gritou ao marido, que lavava o carro no quintal. – Vem cá ver uma coisa.

O marido fechou a torneira da mangueira e entrou na casa com as mãos pingando. Secou-as na camiseta e adentrou o quarto.

– O que foi? – perguntou. – Precisa de ajuda? – Augusto examinou o cômodo minuciosamente, como um garoto tentando aprender a posição das cartas antes de virá-las no jogo da memória.

– Eu só queria saber se posso me desfazer de alguns álbuns. Não sei se ainda devemos guardá-los – sugeriu, com as mãos no ombro do marido.

– O que são essas coisas? – Augusto franziu o cenho e sentou-se na cama.

– São todas as nossas fotos, desde a época de namoro. Achei esses álbuns escondidos no guarda-roupas, bem no fundo – Rita pegou dois deles, um azul e um rosa, e indagou: – Podemos doar ou jogar fora esses?

– Claro que não! Eles também fazem parte…

Augusto segurou os álbuns e começou a folheá-los devagar, fitando os olhos e se distanciando mentalmente de sua esposa e de tudo ao redor.

– Mas Augusto… – suspirou Rita, incrédula. – Sei que são importantes pra você, mas querido, não faz sentido. Já faz tantos anos.

– Não, não podemos jogar fora. São os álbuns dos nossos filhos, a Bruna e o Pedro – sussurrou, levantando a cabeça e olhando Rita com um sorriso pequeno entre os lábios.

– Tudo bem, você que sabe. Vou colocar tudo embaixo da cama. Preciso esvaziar essa parte do guarda-roupas pra colocar outras coisas – conformou-se e rapidamente juntou os outros álbuns, recolheu as fotos avulsas que caíram pelo chão e empurrou-lhes por debaixo da cama de casal. – Depois você coloca esses álbuns aí também. Tenho que ir na Márcia, acho que ela vai gostar se eu der esse vestido pra ela.

Rita saiu apressada do quarto, com o vestido lilás nas mãos – ainda tinha muito o que fazer no feriado. Augusto, entre a poeira e as meias espalhadas pelo chão, esqueceu do carro ensaboado no quintal e dirigiu-se à janela do quarto. Abriu-a por inteira e tornou a folhear o álbum azul. Como se estivesse tocando delicadamente uma harpa, passava as páginas, até chegar ao fim. Pegou o álbum rosa e abriu-o numa capa, em que animais coloridos ilustravam o título “Meus primeiros passinhos”. Não havia fotos. Tampouco no resto do álbum; apenas espaços vazios onde deveriam haver fotografias infantis. No álbum azul também não havia fotos. Do início ao fim, do “Nascimento” ao “Natal em família”, eram apenas plásticos transparentes criando volume. Assim como as fotografias, não havia filhos, nunca houve. Augusto sempre quis um casal de herdeiros, mas não podia gerar sequer uma criança. Ao menos, ele tinha dois álbuns e imaginação de sobra para imaginar como deveria ser pai.

Thiago Dalleck

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