A sala já estava cheia. Todos aguardavam, apreensivos, o início da reunião.
– Ouvi dizer que vão fazer uns cortes no orçamento. – disse o Travessão.
– Cortes? Como assim? Onde você ouviu isso? – perguntou a Interrogação.
– É, um de nós vai pra rua hoje. – respondeu o Travessão.
– Bem, não contem comigo. Se tem alguém que não precisa se preocupar aqui com isso, esse alguém sou eu. – disse o Ponto Final.
– Tava demorando para o Sr. Arrogante abrir a boca. – disse a Vírgula.
– Você sabe muito bem que eu tenho razão. Eu sou o mais usado. O mundo inteiro me usa. Eles não podem abolir o Ponto Final, fato. – retrucou ele.
– Ah, querido. A questão não é essa, todos nós sabemos da sua utilidade no mundo gramatical, não precisa jogar na cara de ninguém. O problema é a sua arrogância, isso sim. – disse a Vírgula estressadíssima.
– Isso é inveja! Só porque ninguém sabe usar você! – gritou ele.
Todos na sala ficaram boquiabertos.
– Isso mesmo! Essa é a verdade. É o que todo mundo pensa, mas ninguém tem coragem de falar: ninguém usa você adequadamente. É tudo na intuição. Sem contar que um pequeno erro, já muda todo o sentido de uma frase. Você só causa confusão. – gritou o Ponto Final.
– Seu ridículo. – disse a Vírgula, com um tom de voz choroso. – Não sei como eu fiquei tanto tempo casada com você.
– Mamãe, parem de brigar. – disse o Ponto-e-Vírgula.
– É, ninguém merece. – disse o Dois-Pontos.
– Eu e o papai não estamos brigando, estamos apenas conversando. – disse a Vírgula.
– É que a mãe de vocês não consegue ouvir a verdade. – disse o Ponto Final.
– Parem de brigar. – gritou o Agudo. – Pelo amor de Deus! Nós temos um problema mais sério aqui para resolver.
– Que problema? Por que você acha isso? Como você sabe? – indagou a Interrogação.
– Tensão… – sussurraram as Reticências.
– Para de fazer tantas perguntas, Interrogação! Que saco! Já chega! – gritou a Exclamação. – É óbvio que vem coisa ruim por aí! Do contrário o Dicionário não teria marcado essa reunião urgente!
– Medo… – sussurraram novamente as Reticências.
– Ouvi boatos no corredor de que um novo acordo ortográfico vai entrar em vigor. – disse o Travessão.
– Pavor… – sussurraram as Reticências.
– Mas vocês querem parar de falar essas palavras soltas?! Minha Nossa Senhora, vocês são muito chatas! Essas Reticências são insuportáveis… Fala sério. – gritou o Agudo, perdendo a paciência.
O silêncio tomou conta da sala. Todos se entreolhavam.
– Sou eu. Eles vão me demitir. Estou sentindo. – disse o Circunflexo. – Ninguém sabe nem o meu nome. Eles me chamam de chapeuzinho. – e Circunflexo caiu no choro.
– Não… Sou eu quem eles vão demitir. – disse o Cedilha. – Nunca gostaram de mim. E o ss tem o mesmo som que eu, além de ter mais carisma.
– Se é assim, eu estou fora também. Hoje em dia ninguém mais tem paciência de me usar. – disse o Til. – As pessoas não querem perder tempo me colocando nas palavras. Foi-se o tempo em que o topete nas letras fazia sucesso…
– Calma, pessoal. Não vamos sofrer por antecipação. Talvez esse boato seja furado. Talvez o Dicionário venha dizer que vamos receber um aumento no salário. É, pode ser isso. – disse o Travessão tentando acalmar os outros.
– Para com isso. Todo mundo sabe que é notícia ruim, Travessão. – disse o Ponto Final. – Você não se lembra da última reunião urgente que fizeram aqui? E os boatos se confirmaram. Não deu outra: era um novo acordo ortográfico. Vocês não se lembram? – perguntou ele.
– Claro. Como poderíamos esquecer? – disse o Agudo. – Aquele acordo ortográfico sangrento… Eu sinto tanta falta do ph.
– Alguém tem uma neosaldina? – perguntou o Apóstrofo. – Minha cabeça vai explodir. Minha pressão está caindo. Se alguém aqui vai ser demitido, sou eu! Ninguém faz a menor ideia de quando me usar. Nem eu sei direito quando devem me usar. Alguém aqui sabe?
Um silêncio constrangedor se formou.
– Estão vendo?! – gritou ele. – Para muitos, eu sou só uma Vírgula voadora.
– Meu Deus, Apóstrofo. Você está vivendo uma crise de identidade horrível. – disse o Travessão. – Eu tenho um psicólogo muito bom, depois lhe passo o telefone dele.
– Obrigado. – respondeu ele aos prantos.
– Que horas são? Por que está demorando tanto? Já não era para ter começado essa reunião? O Dicionário já não devia ter chegado? – perguntou a Interrogação.
– Pânico… – sussurraram as Reticências.
– Alguém manda elas calarem a boca! – gritou o Ponto Final. – Essas loucas varridas ficam falando essas palavras soltas!
– Fúria…
– Já chega. – e o Ponto Final avançou nas Reticências.
Uma grande briga começou.
– Parem com isso! – gritou a Exclamação. – Hífen, separa eles!
O Hífen foi correndo separar a briga, quando de repente o Dicionário entrou na sala. Fez-se um silêncio. Todos ficaram imóveis. O Dicionário foi até o centro da sala e encarou um por um.
– Desculpem-me por ter os tirado de seus aposentos, mas o assunto é sério. Foi decidido um novo acordo ortográfico.
– Eu sabia! – gritou o Travessão.
– Hífen, você sofreu algumas modificações no seu uso. – disse o Dicionário.
Todos olharam compadecidos para o Hífen.
– Eu? – perguntou o Hífen tremendo.
– Sim, depois nós conversaremos melhor sobre essas mudanças. Agudo e Circunflexo, vocês dois também sofreram alterações.
– Eu tinha certeza. – resmungou o Circunflexo. – Perdi as vogais tônicas fechadas em “o” nas paroxítonas, não é?
– Sim. Você não trabalhará mais com o enjoo, voo… – respondeu o Dicionário.
– Tudo bem, sempre me colocavam no lugar errado mesmo. – retrucou o Circunflexo. – Pelo menos tem um lado bom nisso tudo, vou sair em todas as manchetes de jornais e revistas. Quem sabe assim eles aprendem que o meu nome não é chapeuzinho.
– E três velhos amigos serão reintroduzidos ao alfabeto: o k, w e y. Os três já estão em seus novos aposentos. Preciso da ajuda de todos para acabar com o bullying que acontece com eles, está bem? – disse o Dicionário.
Todos afirmaram com a cabeça.
– E onde está o Trema? – perguntou o Dicionário.
O Trema, que estava sentado no fundo da sala, levantou a mão.
– Aqui, senhor.
– Você está demitido. – disse o Dicionário.
Todos ficaram boquiabertos.
– O quê? – gritou a Vírgula. – Mas e a lingüiça?
– Oi? – perguntou o Dicionário.
– Como as pessoas irão falar lingüiça sem o Trema? – perguntou a Vírgula.
– Mas infelizmente foi o que eles decidiram. – respondeu o Dicionário.
– Mas eu nunca fiz nada, sempre fiquei na minha. – disse o Trema.
– Eles disseram o motivo? – perguntou a Interrogação.
– Tem a ver com o departamento de Portugal, mas não deixaram muito claro. – disse o Dicionário.
O Trema levantou-se e abraçou um por um. Alguns choravam desesperadamente, como era o caso da Vírgula. O Trema foi até o seu quarto, fez a sua mala e saiu com a premissa de que tudo iria ficar tranqüilo. Tranquilo. Tranqüilo.
(Uma singela homenagem ao trema.
Trema, nunca te abandonarei.)
Thalles Cabral
Do blog 9 Estórias
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